tem algo quebrado em mim faz algum tempo

Gustavo Roças
2 min readSep 18, 2022
meu dedo e as estruturas

Desde que quebrei o dedo tenho testemunhado o olhar aflito de passantes, desconhecidos, por onde ando. Você consegue imaginar: a estrutura de ferro — estranha, externa — sinaliza para quem me olha que algo em mim está quebrado. Há quem se compadeça; há quem se afaste, aflito. Há poucos, pouquíssimos, que me olham nos olhos.
Numa das primeiras noites em que dormi, tentando equilibrar o braço para cima em um travesseiro mais alto, durante algum sobressalto sonâmbulo, arranhei o lábio inferior com o ferro mais afiado. Acordei assustado. Há estruturas de suporte impossíveis de manter escondidas.
Tem algo quebrado em mim faz algum tempo.

A antropóloga Margaret Mead diz que a primeira evidência de civilização numa cultura é a prova de uma pessoa com um fêmur quebrado e curado. A marca da civilização é, portanto, também, o cuidado. Eu não lembrava disso assim, de bate-pronto; eu precisei ser lembrado por um corte no lábio: não se cria civilização (não se cria nada) sem amor.

O amor por si só é trabalho. Amor é manutenção; estrutura de suporte.
Disso eu lembrava com mais facilidade, mas daí a por em prática é mais difícil.
É muito ruim acreditar que você é difícil de amar.
Não é?
Em momentos difíceis eu repito para mim mesmo que é preciso respirar. Fundo. Eu falo assim mesmo, você sabe: é preciso respirar fundo. E respiro. Eu queria ter uma estrutura metálica que me mantivesse de pé por mais tempo.

Eu estou tentando com muito esforço não desmoronar.

Os abalos sísmicos que mexeram em minhas estruturas datam de muito antes da lesão grave. É como se a lesão fosse a representação concreta das estruturas não preparadas para grandes choques tectônicos. (sofrer apenas no abstrato é melhor ou pior?)
As rachaduras estruturais abstratas não necessariamente chocam os passantes. E é aí que mora a dificuldade; a minha.

Nessa minha mania de não querer ser difícil de amar eu acabei me esquecendo de dar a alguém o trabalho específico. Quis manter a aparente destreza independente enquanto o fêmur grudava; eu deixei de pedir por amor. Encarar o amor como tarefa é difícil, você sabe.
(mas se não é tarefa é o quê?)
Tem uma outra frase (desculpa) mas essa eu não lembro quem foi que disse.
(eu estou citando muitas frases)
Ela veio para a minha cabeça esses tempos;
(porque não to sabendo como escrever) a frase diz algo do tipo:
(amar) Não é sobre construir a casa pra viver, é viver para construir a casa.

Você sabe.
Amor é a estrutura — a única possível — que cria civilizações. O meu dedo segue amparado por estruturas externas e metálicas. Assustando passantes e quebrando toda minha ideia de destreza. Independente, eu?
Não agora. (alguma vez?)

(Tem algo quebrado em mim faz algum tempo.)

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Gustavo Roças

quem sabe se de verso em verso eu não te viro do avesso